Espera-se no Senado o aprofundamento dos debates acerca do novo tributo de competência dos estados
Guilherme José Lima
04/08/2023|05:30
Matéria original saiu em: https://www.jota.info/artigos/contribuicao-sobre-commodities-na-pec-45-ou-foi-enchente-ou-mao-de-gente
Na política, costuma-se afirmar que “jabuti não sobe em árvore, se está lá, ou foi enchente, ou mão de gente”. Em outros termos, significa dizer que algo se encontra fora da ordem natural, e apesar de não existir no primeiro momento uma lógica, certamente possui uma explicação.
É o que parece ter ocorrido com a inclusão do art. 20 da PEC 45/2019, aprovada por meio de emenda aglutinativa na Câmara dos Deputados – ainda pendente de aprovação em dois turnos no Senado –, sem o devido debate em plenário, comissões temáticas e grupo de trabalho formado para analisar a reforma tributária sobre o consumo.
Segundo o dispositivo, os estados e o Distrito Federal poderão instituir contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação, em substituição à contribuição a fundos estaduais, estabelecida como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento relacionado ao ICMS, prevista na respectiva legislação estadual em 30 de abril de 2023, com prazo para vigorar até 31 de dezembro de 2043.
Como se pode notar, trata-se de uma contribuição especial que poderá ser instituída pelos estados e pelo Distrito Federal, que até então não possuíam essa competência tributária, exclusiva da União, salvo nos casos de contribuição para o custeio da Previdência Social de seus servidores, conforme disposto no art. 149 da Constituição Federal.
Então, o que seriam essas contribuições a fundos estaduais estabelecida como condição a aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado, instituídas até abril de 2023, mencionadas no artigo 20 da PEC 45/2019?
Ao que tudo indica, diz respeito às “contribuições facultativas” vertidas aos fundos estaduais destinados ao investimento em infraestrutura e habitação, inicialmente criado pelo estado de Mato Grosso do Sul, através da Lei Estadual 1.963, de 11 de junho de 1999, que instituiu o Fundo de Desenvolvimento do Sistema Rodoviário do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundersul), declarado constitucional pela Suprema Corte nos autos da ADI 2.056-1 em 2007.
Nessa oportunidade, o STF decidiu que a contribuição criada pela lei de Mato Grosso do Sul não possui natureza tributária, pois está despida do elemento essencial da compulsoriedade. Assim, não se submeteriam os limites constitucionais ao Poder de tributar.
Em consequência dessa decisão da Suprema Corte, surgiram diversos fundos estaduais semelhantes no país, financiados por essas “contribuições facultativas”, exigida como condição para que o contribuinte possa usufruir de diversos regimes especiais ou benefícios fiscais.
Entretanto, para além dos vícios de inconstitucionalidade formal, que não serão objeto de análise nesse texto, o dispositivo aparentemente viola diversos preceitos materiais da Constituição Federal.
Um exemplo claro é o marco temporal estabelecido no art. 20 da PEC 45/2019, quer dizer, as “contribuições facultativas” para financiamento dos Fundos Estaduais destinados a investimento em infraestrutura e habitação deveriam ter sido instituídas até 30 de abril de 2023, limitando a possibilidade de exercício da competência no tempo, com potencial de causar um desequilíbrio entre os estados-membro, isto é, aqueles que não possuíam essa previsão, ficarão, em tese, impossibilitados de criar a contribuição especial em suas respectivas legislações, em total afronta ao pacto federativo.
Além disso, o dispositivo autoriza uma espécie de transmutação constitucional de “contribuição voluntária” – sem compulsoriedade, conforme ADI 2.056/1 – para contribuição especial instituída pelos estados – natureza tributária –, representando um verdadeiro absurdo e atentado a segurança jurídica.
Embora a jurisprudência do STF seja favorável até o momento, existem várias Ações Diretas de Inconstitucionalidade questionando essas “contribuições facultativas” criadas pelos estados, pendentes de apreciação, que podem eventualmente ser declaradas inconstitucionais.
Na verdade, o dispositivo tenta contornar essas situações, evitando a perda do valor significativo da arrecadação de alguns estados-membro para investimento em infraestrutura e habitação até 2043, além de criar uma “blindagem” contra eventuais questionamentos no tocante à constitucionalidade.
A propósito, além das “contribuições voluntárias”, alguns estados da Federação instituíram taxas sobre alguns produtos primários e semielaborados (grãos em geral, minérios etc.), que já foram, inclusive, declaradas constitucionais no julgamento das ADIs 4785, 4786 e 4787, relativa às Leis Estaduais de Minas Gerais, do Pará e do Amapá, sobre as taxas de controle, monitoramento e fiscalização das atividades de pesquisa, lavra, exploração e aproveitamento de recursos minerários (TFRM).
Por essa perspectiva, muito provavelmente, poderemos ter uma sobreposição de cobranças entre essas novas contribuições dos estados e as taxas sobre a mesma base econômica (produtos primários e semielaborados), ou seja, bis in idem, onerando ainda mais os contribuintes e de constitucionalidade duvidosa.
Por último, vale destacar que a maioria desses produtos primários e semielaborados são destinados à exportação, assim, dentro do princípio mundialmente aceito de não se exportar tributos, é vedado aos estados a cobrança de tributos nessas operações (art. 155, §2°, X, a, da CF/1988), em virtude da imunidade tributária, que possui como objetivo incentivar a exportação por meio de desoneração da carga tributária.
Por tudo isso, espera-se no Senado o aprofundamento dos debates sobre o novo tributo de competência dos estados (art. 20 da PEC 45/19), que afronta o pacto federativo, o princípio da segurança jurídica, non bis in idem e a imunidade tributária sobre operações de exportação pelos estados.
Guilherme José Lima
Advogado tributarista. Consultor legislativo em Direito Tributário na Assembleia Legislativa do Maranhão. Pós-graduado em Direito Tributário pela FGV.